1969, o luminoso ano de Woodstock, não começou bem para os Doors. Morrison foi acusado de obscenidade num concerto em Miami, um escândalo dos diabos que gerou o cancelamento de concertos, a censura das rádios e o risco de Jim poder ser preso a qualquer momento. Pior ainda, lançaram Soft Parade, um disco impotente e barrigudo com baladas penteadinhas afogadas em orquestrações. Os Doors precisavam desesperadamente de afirmar de novo ao mundo a sua vitalidade pagã e foi com esse espírito que em Novembro se fecharam no estúdio da Elektra .
Tudo em Morrison Hotel foi então uma saudável reacção ao acidente Soft Parade. Onde antes havia cordas e sopros, há agora de novo o som cru de uma banda de rock. Onde antes Jim se tranvestia em crooner meloso (uma espécie de Frank Sinatra enfrascado em ácidos), regressa agora à sua condição de bluesman branco, “singing the blues ever since the world began”. Onde antes Robby Krieger escrevera metade das letras (a metade má), Jim assina agora a poesia de todas as canções.
Não é por acaso que o disco leva agora o nome de Morrison, referência a um hotel manhoso que Manzarek encontrou na baixa de Los Angeles. Reza a lenda que não tendo os Doors obtido autorização da gerência para tirar a icónica foto da capa do disco, tiraram-na na mesma à socapa, fugindo a correr. Gosto de imaginar que enquanto o carro arrancava estrada fora lançando fumo para a cara dos empregados do hotel, a música que se ouvia no carro com o volume no máximo era “Roadhouse Blues”. Imagino também que é Jim que está ao volante, bêbado que nem um cacho, andando propositadamente em contramão, e desviando-se de um camião no último instante. “The future is uncertain and the end is always near”…
As próprias sessões de estúdio foram míticas. Conta-se que Pamela Courson (a namorada de Jim evocada em “Queen of the highway”) bebeu a garrafa de Morrison para evitar que este estivesse bêbado durante as gravações. Jim fica furioso, engalfinham-se os dois numa discussão danada mas acabam os dois enlaçados. “She was a princess, queen of the highway. He was a monster, black dressed in leather”…
O álbum foi lançado já em 1970, e apesar de não ter tido nenhum single de sucesso a promovê-lo (“You make me real” ficou-se por um modesto quinquagésimo lugar), chegou a número quatro na tabela de vendas de LPs. Por mais que o establishment de então tentasse crucificar o incómodo Morrison e seus apóstolos, o que é certo é que Morrison Hotel foi mais uma vez disco de ouro, o quinto consecutivo no espaço de pouco mais de três anos, proeza ao alcance de muito poucas bandas. Também os críticos fizeram as pazes com a banda, com excepção da Rolling Stone, que continuou até ao fim a sua infame campanha de ódio.
Para que não houvesse qualquer equívoco em relação ao espírito rock and roll do novo disco, Morrison Hotel começa justamente com “Roadhouse Blues”, um clássico instantâneo que transpira testosterona e cerveja por todos os seus poros. O riff de Krieger tem tomates, a harmónica de John Sebastian e o piano de Manzarek andam saudavelmente à pancada na entrada da roadhouse, a improvisação scat de Jim é memorável. Na sua autobiografia, Manzarek alega que o verso “When I woke at this morning I got myself a bear” era originalmente “got myself a beard”, uma private joke em relação a um suposto sono contínuo de vários dias, induzido por excesso de drogas. Dadas as credenciais psicotrópicas de Jim, não tenho razões para duvidar.
A funky “Peace Frog” é uma das raras canções dos Doors abertamente políticas. O “blood in the streets” é uma referência clara aos motins sociais que aconteciam então um pouco por todo o lado. New Haven é também invocado, cidade onde pela primeira vez na história do rock alguém foi preso em pleno palco: Jim, é claro, acusado de provocação às forças da autoridade. E no meio dos tumultos sociais, o seu próprio tumulto interior: “indian scattered on a dawn’s highway bleeding, ghost crowd the young child’s fragile eggshell mind”, longínqua recordação de infância que o perseguiu até ao fim.
A arabesca “Indian Summer”, com a sua linha de baixo roubada a “The End” e sua ternura etérea, remonta às gravações do primeiro disco, e não se percebe como ficou então de fora. O mesmo sucede com a psicadélica “Waiting for the Sun”, gravada nas sessões do disco com o mesmo nome. Morrison Hotel só tem a agradecer estas duas inexplicáveis hesitações.
A clássica “The Spy” mostra bem como o talento de Morrison enquanto escritor de canções se mantém ainda intacto. Inspirada no romance de Anais Nin “The Spy in the house of love”, tem o mesmo feeling bluesy que predomina ao longo do álbum e que passou para o disco seguinte.
Morrison Hotel é um grande disco que soube envelhecer. Pode não ser perfeito como os dois primeiros álbuns, mas depois do declínio começado com Waiting for the Sun e amplificado em Soft Parade, Morrison Hotel reencontra outra vez o trilho perdido. L.A. Woman não o trairá.