Ao segundo dia de Super Bock Super Rock o público sai rendido. Os Blur de Damon Albarn e Graham Coxon estilhaçaram tudo à volta, não deixando reféns. Isto, aliado aos grandes concertos de Savages e a uns surpreendentes Bombay Bicycle Club, fizeram de ontem, o dia mais forte até ao momento. Pelo meio ainda houve tempo ouvir outras coisas…
E a primeira delas foi Benjamin Clementine no Pavilhão de Portugal (o tal da pala). Apenas bastou a entrada no palco para percebermos que não vinha aí mais um artista. Tem muito pouco de Benjamin, este Clementine, apesar de não andar no mundo da música há muito tempo. Tudo nele é talento natural: a voz, a forma despreocupada com que se entrega ao piano, as palavras das sua canções. Se já gostávamos do pouco que conhecíamos dele, ficámos rendidos aos primeiros acordes do primeiro tema tocado. Benditos corredores do Metro de Paris onde foi descoberto a cantar! Benjamin Clementine é uma figura que transporta consigo um estranho e fantástico magnetismo. É clássico e novo ao mesmo tempo, é jazz, é torch song, é um ser de outro planeta! Ouve-se na voz de Benjamin Clementine um mar de outras tantas vozes, ecos delas, das de Nina Simone, Tom Waits, Scott Walker, Nick Cave, até mesmo de Aznavour, entre tantos outros. Paris formou-o. Londres viu-o nascer. Ontem, na nossa Lisboa, ao início do fim da tarde, tivemos a sorte de assistir ao seu concerto. A nossa boca sempre aberta de espanto, o coração a bater ao ritmo do que o músico ia mostrando em palco. A música de Clementine é forte, e muitas vezes faz doer a alma. Há nela tanta solidão, tanta errância, tanto sofrimento, tanta angústia, tanta nudez… E tanta arte, meu Deus! Destaque ainda para os restantes músicos em palco. Ao seu lado, no violoncelo, a presença da belíssima Barbara Le Liepvre também não nos deixou indiferentes. A noite ainda nem sequer tinha realmente começado, e já estava ganha por uma goleada das antigas.
Os Kindness não mereceram as dificuldades técnicas que infestaram o início do seu concerto. Com instrumentos e vozes fora de volume e uma acústica difícil, a banda inglesa personificou a expressão fake it till you make it. Foi em “With You”, canção protagonizada por uma das coristas, que a banda ascendeu mais alto e se sentiu verdadeiramente a soul a sair das cordas vocais. O problema é que a bipolaridade simpatia para o público/frustração por causa dos problemas sonoros já tinha comprometido a empatia com o público. Ultrapassados os principais obstáculos acústicos, foi com “World Restart” que o grupo recomeçou o concerto, já com uma atitude despreocupada e honesta. Ainda que a incandescência de estúdio que caracteriza o projecto de Adam Bainbridge não seja muito bem emulada em palco – talvez pelo baixo e bateria abafados, graças à “pala” do palco EDP -, a falta de beleza sónica era compensada pela presença em palco do grupo. De guitarra na mão, Bainbridge fez-se Prince e prosseguiu com o concerto. Seguimos para o palco Super Bock.
Deixar Kindness para ver The Drums doeu um pouco na alma. Primeiro porque trocámos a pala do Pavilhão de Portugal e toda a sua bela envolvência pela soturnidade do MEO Arena, segundo porque a banda de Nova Iorque soa a datada, tal como os Vaccines soaram no dia anterior. Com um primeiro EP, lançado em 2009, os Drums prometeram muito. Músicas como “Saddest Summer” ou “Let’s Go Surfing” pareciam levar a banda para a consagração mas a decepção do seu primeiro disco de originais, levou a um arrefecimento pela banda que nem um bom segundo disco, Portamento, conseguiu levantar. Em 2014 a banda lançou Encyclopedia, tendo aproveitado o dia de ontem para as apresentar ao público do MEO Arena. Um concerto morno, por vezes, sensaborão, onde se destacaram alguns dos hits, como “Let’s Go Surfing”, “Best Friend”, “Money” ou “Down By The Water”. Era tempo de ir ouvir rock a sério debaixo da pala…
Antes das Savages, ainda os Kindness tocavam no palco EDP e apercebemo-nos da terrível decisão que tinha sido sair desse palco. Adam Bainbridge dançava no meio do público e o público dançava em palco, numa festa intimista que compensou toda e qualquer falha do começo atribulado. Pouco depois, entravam em palco as rainhas da festa – falamos das Savages, é claro. Pós-rock frio e conciso, como se quer, com “City’s Full” a abrir as hostes. A cidade do rock estava definitivamente cheia para as receber. Com uma introdução que não deixou ninguém descontente, Jenny Beth não temeu em avançar com canções desconhecidas. “Vamos tocar umas músicas novas, se não se importarem”, disse, e o público delirou. Ainda que não saíssem do mesmo registo e que se alimentem de um só disco com já dois anos, o quarteto londrino consegue sempre um concerto ímpar, onde tocam o álbum de estreia quase na íntegra, com uma energia e garra difíceis de encontrar. O momento alto do concerto foi quanto Beth ascendeu aos braços do público, levando-o ao êxtase e fortemente marcando o show na memória dos espectadores. Uma entrega vinda do além, intensa como poucas, uma interacção com o público muito positiva, contrastando com o negrume e a violência das canções. “Esta é para as senhoras”, anunciava antes de “She Will” e depois de “Hit Me”. As guitarras mais sangrentas e demolidoreas do festival vieram com “Husbands”, esse hino rock pulsante e gritante. No final, a vocalista lembrou a última passagem por Portugal e como o concerto no Coliseu de Lisboa as marcou. “Fuckers”, a canção final, pensada originalmente como uma canção de raiva, tornou-se também uma canção de amor. Foi exactamente isso que nos disse, explicando que o amor com que o público português as mimou nessa noite as tinha marcado pra sempre e alterado a percepção dessa canção. Foi assim, com uma tarola chicoteante e guitarras que esventravam qualquer um, que as meninas maravilha se despediram de Lisboa mais uma vez, todos ansiando e elas prometendo voltar.
Mas nem todos foram ouvir as Savages. O resto dos festivaleiros rumou ao MEO Arena para assistir à a colaboração entre Jorge Palma & Sérgio Godinho. Escolha difícil para alguns, pois qualquer um teria potencial para ser um óptimo concerto. Às 21h50 subiam ao palco dois dos maiores cantautores do século passado. Duas carreiras riquíssimas, com a importância que já lhes conhecemos. Então, numa dança a duas vozes, Jorge Palma e Sérgio Godinho passaram por muitos dos êxitos que compõem a sua discografia, destacando-se “Só” cantada em dueto, “Mudemos de Assunto”, “Frágil”, “Deixa-me rir”, “O Primeiro Dia”, onde o público fez questão de acompanhar a alto e bom som a música de Sérgio Godinho, e o final triunfante e em festa com a canção “A gente não vai parar”, que teve direito a largos aplausos. Um concerto difícil, pelas horas e pelo espaço em que se dava, mas que a experiência e a qualidade dos dois grandes artistas venceu. Uma celebração de duas vidas cheias e da canção em si.
Perto do final do concerto de Palma e Godinho, uma festa enorme começava no palco EDP. Bombay Bicycle Club eram o mote, com hinos pop e rock infalíveis e um público completamente entregue aos músicos. Do primeiro e definitivamente melhor disco I Had The Blues But I Shooked Them Loose, pouco se ouviu – “What If” foi a primeira a ouvir-se, seguida de “Evening/Morning” e “Always Like This” -, mas as grandes “How Can You Swallow So Much Sleep”, “Your Eyes” e “Carry Me”, dos dois últimos álbuns, não desiludiram e apoderaram-se dos corações de uma plateia emocionada e entusiasmada. Um surpreendente e belo prenúncio antes dos Blur.
Mas antes de Blur havia dEUS. Não é só pelo nome, mas ver dEUS ao vivo é sempre uma experiência quase religiosa. Há duas décadas que é assim, muito por causa dos primeiros discos (Worst Case Scenario, de 1994 e In a Bar Under the Sea, de 1996). Foi com esses discos que os dEUS se meteram dentro da nossa pele. Não que os álbuns seguintes sejam maus, só não foram tão marcantes. Ao vivo, a mesma coisa. Os dEUS são uma banda de rock a sério, sólidos, consistentes, liderados por um verdadeiro frontman. Além desta vertente, há a parte sentimental, com o despertar de memórias de quando ouvimos pela primeira vez na vida canções como “Little Arithmetics” ou “Suds & Soda”. Neste concerto no SBSR, foi isso que aconteceu com uma ligeira parte do público – a maioria não estava lá para isso, só queria despachar os belgas para ver Blur. Para esses, o concerto de dEUS terá sido só um momento pouco relevante de rock. Para os outros, foi mais um capítulo na história de amor entre a banda de Tom Barman e a velha Lisboa, mesmo que não estivessem a tocar em casa, mesmo que o som do pavilhão não seja perfeito, mesmo que já não tenhamos 20 anos.
Os mesmos 20 anos (ou menos para alguns) que parecíamos voltar a ter ao ouvir a banda de Damon Albarn, Graham Coxon, Alex James e Dave Rowntree. Os Blur são uma referência no mundo da música actual e não apenas no fenómeno algo passageiro que foi a britpop. Ao contrário dos Oasis, os Blur amadureceram, criaram outros tipos de sons e, principalmente, mantiveram-se frescos, mesmo com algumas lutas internas entre Albarn e Coxon, que acabaria por levar à saída do guitarrista. Pazes feitas, a banda voltou a tocar junta e, para alguma surpresa, voltaram a gravar um disco de originais, The Magic Whip, que superou todas as expectativas no que diz respeito a um disco de reunion e que não destoa do resto do catálogo da banda. E é por estas razões que ver um concerto de Blur não soa a datado ou meio constrangedor como tivemos exemplo no concerto dos Stone Roses há uns anos. E prova maior não poderia ter sido dada ao começarem o evento com “Go Out”, terceira música do seu mais recente disco, com clara aceitação do público. Num set com mais de 20 músicas, a banda de Londres percorreu os seus quase trinta anos de carreira, oferecendo alegria geral e contagiante em músicas como “Coffee & TV”, “Beetlebum”, “Tender”, “Parklife”, com participação especial de um fã trazido a palco pelo próprio Albarn, “Song 2” e “Girls & Boys”. Num clima de festa, com grupos de pessoas abraçadas umas às outras, aos saltos com cervejas a voar, havia um desejo geral que o concerto não acabasse e tivessem que vir os seguranças para levar a banda dali para fora, como aconteceu em Roskilde, com o seu projecto, Africa Express. Assim não aconteceu mas o sentimento era que o MEO Arena tinha presenciado um dos melhores concertos nos seus longos 17 anos de história.
Texto: Carlos Lopes, Frederico Batista, Francisco Marujo, Luís Marujo
Fotos: Sofia Mascate e Francisco Pereira