Com um pé numa nave espacial e o outro no gueto se faz esta obra-prima do hip-hop: experimental sem esquecer a tradição, sonhadora sem esquecer a rua. Andre 3000 e Big Boi, portanto.
Na primeira metade dos anos 90, o hip-hop jogava-se apenas entre a Costa Leste e a Costa Oeste, tudo o resto era paisagem. Até que os Outkast apareceram, pondo o Sul pela primeira vez no tabuleiro. De disco para disco, Big Boi e Andre 3000 foram subindo a parada, tornando-se a banda de hip-hop mais inovadora e influente da sua geração. Em Stankonia atingem o seu auge criativo, extravasando o género para lá das suas fronteiras.
Veja-se o caso da inventiva “B.O.B.”. Não é só o namoro com a cultura rave que nos surpreende (a batida frenética de dança, a blasfémia de tempos tão rápidos). É também a agressividade rock das suas guitarras e o inusitado coro gospel. Em teoria, não devia resultar tamanha salgalhada. Acontece que… resulta. “B.O.B.” é um dos raps mais inventivos de sempre, o som do segundo milénio a explodir. Que ousadia, que arrojo, que classe.
Não se pense, porém, que só a euforia passa por aqui. A cidade futurista de Stankonia é fervilhante, há estados de espírito para todos os gostos. Ora, vejamos.
“Snappin’ & Trappin” é sombria e claustrofóbica, um dos primeiros exemplares do que viria mais tarde a ser chamado de trap. Se hoje o género domina o hip-hop, e salpica a própria pop, devêmo-lo também aos Outkast.
Já “Mrs. Jackson” é carinho e respeito, um pedido de desculpas à mãe de um amor que chegou ao fim. Neste single encantador, Andre 3000 sai finalmente do armário vocal, assumindo que sabe cantar. Faz ele senão bem: o seu falsete R&B à Prince sabe a morango com chantili.
“Gasoline Dreams” segue outro caminho, o da raiva e indignação. Um desabafo contra a América racista, com um flow agressivo à Public Enemy. Que vontade nos dá de partir centros comerciais e roubar discos dos N.W.A..
E, claro está, há desejo e sedução, sem nunca ceder ao gangsta rap neanderthal. O cavalheirismo de “I’ll Call B4 I Cum” pode não ser o mais ortodoxo mas não deixa de ser gentil: não temos pressa, que as senhoras se satisfaçam primeiro…
Nesta profusão de estéticas e estados de espíritos, como é que o barco não se afunda, fragmentado em mil pedaços? Porque um groove gostoso atravessa o disco inteiro, unindo as pontas soltas. A influência do P-Funk (Parliament, Funkadelic) é aqui evidente, não só no balanço sincopado, mas também na mitologia: espacial e louca, divertida e nonsense. É Andre 3000 que prossegue a missão do mestre George Clinton: libertar o imaginário da cultura negra americana, espraiando-o pelo tempo e pelo espaço. Big Boi funciona como contrapeso, o durão com sabedoria de rua, escrevendo sobre a realidade crua do gueto. Os Outkast sempre viveram desta tensão, aliás, levada agora ao limite em Stankonia. Da síntese entre realidade e sonho, experimentalismo e tradição, se faz esta obra-prima. Kanye West, Kendrick Lamar e Tyler the Creator ouviriam o disco com muita atenção…