Qual é o segredo de Kind of Blue? Porque é que é que quando inspeccionamos a colecção de discos dos nossos amigos ele está sempre lá e se não estiver deixam logo de ser nossos amigos? Porque é que a crítica e o público, eternos Tom and Jerry da indústria musical, fazem um cessar-fogo temporário no que respeita a esta obra-prima? Porque é que 87% dos matrimónios em que um dos cônjuges venera o Kind of Blue e o outro apenas gosta dele acabam em divórcio? As respostas a estas questões não são fáceis e vão demorar o tamanho deste texto.
Miles confunde-se com a própria história do jazz moderno. Aos dezanove anos, começa a fazer gazeta às aulas na Julliard School de Nova Iorque para tocar com Charlie Parker e Dizzie Gillespie, aprendendo mais jazz numa só jam session do que num ano inteiro de conservatório. Parker e Dizzie não eram dois músicos quaisquer, pertenciam à vanguarda que havia revolucionado o jazz com o bebop. Quando Dizzie se vai embora, é Miles que o substitui no trompete, acompanhando o deus Parker. Mas desde muito cedo percebe que nunca seria um virtuoso como Bird e Diz. Miles não esmorece, colmatando as suas limitações técnicas com outros atributos: o timbre, a subtileza, o lirismo, a expressividade. Quem não se pode esconder por detrás da velocidade, tem mesmo que ter algo muito especial para nos dizer.
À poesia dos seus improvisos, Miles alia outra virtude: a sua aptidão para pensar o jazz e detectar antes de todos os outros os seus pontos de fractura. Dedicou assim toda a sua vida a questionar os dogmas do bebop e a fazer avançar o jazz em relação a novas linguagens. Dada a sofisticação harmónica e rítmica do bebop, Miles compreendeu que só havia um caminho possível para essa evolução: simplificar outra vez o jazz. Foi assim que Miles patenteou o cool jazz em 1948 (gravando Birth of the Cool), um estilo radicalmente mais suave, lento e contido do que o frenético bebop. Foi assim que Miles esteve na linha da frente do hardbop (com o influente Walkin’ de 1954), um retorno ao feeling blues e gospel que havia ficado esquecido com um cool jazz cada vez mais europeu e cerebral. Mas foi em 1959 – com Kind of Blue – que Miles levou mais longe o seu projecto de simplificação com o chamado jazz modal.
Expliquemos o palavrão. Miles considerava que a própria harmonia era um dos obstáculos à criatividade, aprisionando o improvisador a uma determinada sequência de acordes. Por isso em Kind of Blue experimentou uma nova abordagem: reduzir os acordes ao mínimo, confinando a música a determinadas escalas mas explorando as infinitas possibilidades melódicas que elas encerram.
Miles depressa se apercebeu que não podia ter um pianista qualquer a bordo mas sim alguém que compreendesse as subtilezas da nova abordagem. Foi assim que recrutou Bill Evans, que mais do que mero side man, foi o braço direito de Miles em toda a arquitectura de Kind of Blue. Dizem até as más-línguas que Miles roubou a autoria de “Blue in Green” e “Flamenco Sketches”, na verdade escritas por Evans. Nunca houve disputas na barra do tribunal mas a verdade é que Evans e Miles nunca mais gravariam juntos.
O convite à última da hora a Evans não foi recebido da melhor maneira. Miles já tinha um novo pianista no seu sexteto, Winton Kelly, pelo que seria de muito mau tom deixá-lo de fora do novo projecto. Miles chegou então a um compromisso: deixou Winton tocar em “Freddy Freeloader”, o tema menos modal de todos, que assentava como uma luva na alma blues do pianista. Mas Kelly não sabia de nada e quando chega ao estúdio fica furioso por ver outra pessoa a açambarcar-lhe o piano.
Conta-se também que Coltrane torceu o nariz à ideia de terem um branco na banda. Nos clubes de jazz de Harlem, maioritariamente frequentados por negros, a reacção era a mesma: o que raio estava aquele “branquelas” a fazer num território que não era o seu? E o próprio Miles, que adorava o estilo sóbrio e impressionista de Bill, fazia questão de o deixar pouco à vontade, tratando-o por “whitey”. Evans nunca se sentiu confortável no seio da banda, raspando-se à primeira oportunidade.
Estes gestos racistas de Miles e Coltrane devem contudo ser lidos à luz do seu tempo. Na década de 50, os negros americanos não tinham ainda os mais elementares direitos civis, sendo tratados como cidadãos de segunda pela maioria branca. Miles era de classe média, filho de um dentista cirurgião, mas nem a sua condição social mais favorecida o protegeu do ferrete do preconceito. Nunca esqueceu de em pequeno ser chamado com asco de “nigger” por um desprezível redneck. A este tipo de humilhações, respondeu desde sempre com uma atitude orgulhosa e algo hostil. Nos clubes de jazz da 52nd Street, com audiências maioritariamente brancas, fazia questão de tocar de costas voltadas para o público, um statement político de recusa de qualquer servilismo à maioria branca. Seria admirado pela sua qualidade artística e nada mais, recusando o lugar de submisso entertainer a que tradicionalmente os artistas negros eram confinados. Pela sua atitude altiva e corajosa, Miles tornou-se um herói da comunidade negra, um modelo a imitar por milhares de jovens sedentos de orgulho e dignidade.
Já falámos de três grandes: o líder Miles no trompete, Bill Evans no piano e Coltrane no saxofone-tenor. Um quarto grande solista junta-se à dream team: Cannonball Adderley no saxofone-alto. Mais gigantes do jazz por metro quadrado seria impossível, algo muito semelhante a Maradona, Pelé, Eusébio e Ronaldo jogarem todos na mesma equipa. A secção rítmica é também irrepreensível: Paul Chambers no contrabaixo e Jimmy Cobb na bateria são Bento e Damas na mesma baliza. Ninguém bate o olheiro Miles em farejar novos talentos. Pouco tempo depois, quase todos fazem furor como líderes das suas próprias bandas.
Há outra característica importante deste sexteto: a de juntar num só corpo sensibilidades muito diferentes, permitindo a Miles explorar todo o cambiante de contrastes. Onde Miles e Evans são contidos e minimais, Coltrane e Adderley são palavrosos e extravagantes. Da mesma maneira, a cor quente e exuberante do saxofone de Adderley dá o contrapeso perfeito ao negrume de quase todo o disco.
Só músicos desta estirpe estariam à altura do desafio proposto por Miles: gravar Kind of Blue com a máxima espontaneidade possível. Sabemos bem, desde os velhos tempos de New Orleans, que a improvisação faz parte da própria essência do jazz. Porém, Miles e Evans levam essa frescura um pouco mais longe, atirando os seus colegas aos leões antes de qualquer ensaio. Para sua protecção, nada mais do que um esboço muito vago do esqueleto dos temas, mostrado poucos minutos antes da fita começar a correr. Kind of Blue capta assim o momento da descoberta, músicos brilhantes explorando pela primeira vez os territórios virgens e selvagens do jazz modal.
E o resultado é de uma encantadora simplicidade, o jazz na sua forma mais depurada. Ora prestem lá atenção à entrada de Miles em “Blue in Green”, uma longa nota e depois outras duas, mas de tal forma expressivas que toda uma curta-metragem é de imediato projectada na nossa cabeça: um bar pela noite dentro desenhado a fumo e uma silhueta ao balcão com dois copos de whiskey – um para o desgraçado, outro para o seu desgraçado coração. Quem conseguir também com apenas três notas convocar tamanha miríade de sensações, que atire já o primeiro trompete.
O próprio nome “Kind of Blue” dá-nos duas pistas fundamentais sobre o disco.
Em primeiro lugar, identifica logo o tom lânguido e taciturno que atravessa todo o álbum. Ora reparem na improvisação de Coltrane em “Flamenco Sketches”, melancólica como um domingo à tarde da nossa infância. Ou ainda o solo de Evans no mesmo tema, gotas da chuva caindo devagar pela goteira e uma menina apanhando-as com a mão com todo o cuidado mas ficando triste quando uma das gotas se magoa contra o chão. Kind of Blue é assim, uma escultura minimal onde se desbastou tudo o que era fútil e redundante, deixando-se apenas a melancolia no seu estado mais puro.
O título do álbum remete-nos igualmente para o diálogo com os blues, agora reinventados à luz dos princípios modais. Miles tem aliás este dom: o de inventar o futuro do jazz num diálogo permanente com o seu passado. O jazz nasceu do blues e nas várias linguagens inventadas por Miles esta ligação com as suas origens foi sempre reactualizada. O carinho de Kind of Blue pela tradição que o antecedeu estende-se mesmo a outros estilos: nos sopros uníssonos de “So What” e “All Blues” há uma clara referência ao velho swing de New Orleans, assim como o saxofone sempre garrido de Cannonball Adderley é bebop no seu estado mais puro.
Mas mais do que o aspecto técnico assim e o aspecto histórico passado, o que realmente faz de Kind of Blue um disco tão especial é o seu profundo humanismo, a forma como tantas décadas volvidas ele continua a tocar certeiro nos “segredos dos locais, que no fundo são iguais em todos nós”.
Deus não existe, o paraíso também não. E para que serviriam eles quando já temos a magia de Kind of Blue?