Há uma certa dose de frieza sombria que habita a música de John Maus que é, no mínimo, fascinante. Talvez não se perceba num primeiro contacto, mas ela existe e nela que reside a sua genialidade.
Há muito que sabemos que John Maus é, ao mesmo tempo, compositor, cantor e um sui generis académico de carreira. Figura de apreciável culto (o concerto que dará este ano em Lisboa já se encontra esgotado há algum tempo, o que revela que essa veneração também por cá existe), é inegável que o músico de Minnesota e colaborador de Ariel Pink vai conseguindo conciliar todas as suas valências de forma extraordinária e tantas vezes inesperada. Assente em ambientes lo-fi e em sintetizadores a lembrar boas bandas dos anos 70 e 80, a música de John Maus é densa, fria, claustrofóbica, embora nunca perca de vista um apurado sentido melódico e rítmico. Ouvir John Maus é jogar ping-pong com Alan Vega, Suicide, Joy Division, Nick Nicely, Gary Numan e tantos outros ao mesmo tempo, sabendo, no entanto, que à partida é Maus que sairá a ganhar em todas as jogadas, tal o cunho particular que, mesmo com tantas influências, consegue impor a cada canção. Mas se quisermos ir um pouco mais longe neste name dropping de artistas, poderemos acrescentar Ariel Pink (claro), Molly Nilsson, The Legends, Slow Steve e por aí fora. Tudo boa gente, rapaziada para nos bater à porta dos ouvidos com agrado e sem necessidade de pedir licença para entrar. Entremos, portanto, em Screen Memories.
O disco é composto por doze temas, mas funciona como um todo orgânico. Ou seja, não há uma canção em particular que possa destacar-se por apresentar grandes diferenças em relação às restantes. No entanto, se por conveniência de escrita quisermos fazê-lo, então “The Combine”, a que abre Screen Memories, terá forçosamente de ser a escolhida. De contornos góticos, escuros, inquietos, convida-nos à dança, mas sem grandes espalhafatos de estilo e forma. É um tema de John Maus, que diabo! Há em “The Combine” e em todos os outros onze momentos do álbum, uma vibração constante que intimida, galopante e disposta a levar-nos num certo desassossego desde o início até ao fim. Os versos minimalistas e diretos dizem quase tudo: “I see the combine coming /
I see the combine coming / It’s gonna dust us all to nothing” e pouco mais se canta para além disto. Segue-se a arielesca “Teenage Witch”, curta, com pouco mais de dois minutos, e dela saímos cantanto “Teenage with! / Want to start a fire, witch?”. Depois vem “Touchdown”, mais sóbria, com aquela voz típica de John Maus que pode amedrontar os ouvidos menos conhecedores do seu particular timbre. Mais do que uma voz, parece um eco que vem de longe… Não sentir em todos eles (nos doze temas e não apenas nos três aqui apresentados) a presença dos míticos Joy Divison, é não ter ouvidos que prestem, apenas orelhas para acumular pêlos e lixo. A sombra da banda pós-punk de Ian Curtis não nos larga um único instante, notando-se um pouco menos em “Decide Decide” e “Sensitive Recollections”. Mas o fio condutor que liga todas as canções é, afinal, o da poderosa e omnipresente guitarra baixo, de braço sempre dado com linhas fortes e melódicas de sintetizadores endiabrados, não esquecendo o ritmo mais ou menos frenético das batidas secas, mecânicas e meio krautianas que parecem ter, também elas, o dom da ubiquidade.
Com Screen Memories, John Maus criou um objeto sonoro que faz apelo à expressão trabalhada por Freud nos finais do século XIX. Todos os temas (e as curtas letras de todos eles) parecem aproximar-se do paradoxo estudado pelo famoso austríaco, misturando elementos que a memória lembra, esquece, reprime e volta a tornar presente numa batalha sem sangue no espaço da infância e da sua (in)consciente fantasia. É, portanto, um disco conceptual, algo que não estranhamos em John Maus. Mas, mais do que tudo isto, é um dos melhores discos saídos ao longo deste ano de 2017.