DJ Subroc? KMD? Nunca ouvi falar. Mas de MF Doom, o super-vilão favorito do hip-hop, já ouviram de certeza. Esta é a história do nome que lhe antecede, o seu irmão mais novo, Dingilizwe Dumile, que o acompanhou de perto nos seus primeiros passos incertos no mundo das rimas e batidas, no trio ora dupla KMD, que lançaram dois discos entre 1991 e 1993 (mais ou menos).
Todos os super-vilões precisam de uma boa história de origem. Esta é a de Daniel Dumile, ou MF Doom, ou Metal Fingers, ou Doom, ou muitos outros, semi deus camaleónico, ancião das rimas e batidas de um hip-hop underground de alto calibre. E a sua história de origem é indissociável da do seu irmão mais novo, Dingilizwe Dumile, ou DJ Subroc. Juntos, criaram dois discos de um espécime de hip-hop já extinto, incluindo o para sempre controverso Black Bastards, o “melhor disco de hip-hop que ninguém ouviu”, segundo a Pitchfork. Este foi embrulhado no escuro a medo pela editora, só tendo visto a luz do dia quase dez anos depois da sua fazedura original, em 2001. No novo milénio, Daniel Dumile transformara-se definitamente no temível MF Doom: já Dingilizwe estava morto e enterrado mesmo antes do álbum ter sido concluído, em 1993, vítima de um atropelamento fatal. Tinha apenas 19 anos.
Dingilizwe Dumile nasceu a 3 de agosto de 1973, dois anos e seis meses depois de Daniel Dumile ou MF Doom. Nascidos em Londres, os irmãos muçulmanos cedo deslocaram-se para o outro lado do oceano com a família, atracando no coração de Nova Iorque, Long Island. Foi na ilha de betão que cresceram e que passaram de meninos a rapazes, apaixonando-se em uníssono, primeiro, pelos desenhos animados, depois, pela banda desenhada, e por fim, pela música. Mais concretamente, por um género musical completamente novo, sedutor, excitante ao qual se começava tartar por hip-hop. Foi nos primórdios da década de oitenta que o nicho musical começou a ganhar forma, e no final da mesma que se consolidava como a próxima grande revolução musical cem por cento americana: sendo assim, os irmãos Dumile cresceram de mãos-dadas com o hip-hop, assistindo da fila de frente às suas mutações constantes até encontrar um corpo confortável e sólido definitivo.
Kurtis Blow. É o primeiro MC que Daniel se lembra de ouvir nos seus primeiros anos de escuta, certamente acompanhado pelo ouvido atento do irmão pequeno, Dingilizwe. É difícil, hoje em dia, olhar para Blow, com a sua indumentária de professor de educação física e as suas cantigas sobre jogar basquete como algo mais do que apenas outro cromo do baralho. Mas Blow, parecendo que não aos dias de hoje, era um revolucionário: para os dois irmãos Dumile, que teriam, respetivamente, treze e dez anos aquando o lançamento da foleira mas importante “Basketball”, era uma porta que se abria de par a par para dois quase adolescentes a ferver de vontade de fazer coisas. Apaixonados pelo hip-hop, passaram pelo graffiti e pelo breakdance, até que chegou a hora de inevitavelmente de pegar na máquina e no microfone para fazer das suas.
O final da década de oitenta foi explosivo para o hip-hop, principalmente no lado Este das coisas, muito graças ao trabalho de uns certos Public Enemy: liderados por Carlton Ridenhour (Chuck D) e William Drayton (Flavor Flav), detonaram no recém nicho musical uma bomba que o contaminava com uma certa dose de perigo, que o tornara infindavelmente atraente e estimulante para centenas de jovens com vontade de desagradar os pais e dizer o que bem lhes apetecia, tal qual o punk dos Sex Pistols fizera em Inglaterra décadas antes. Foi precisamente em Long Island que nasceram os Public Enemy, no final da década de oitenta, e era nessa altura que os irmãos Dumile se equipavam para deixar uma pegada confiante no género com o projeto que os viu nascer, a Daniel como primordialmente MC e a Dingilizwe como primordialmente produtor.
Foi Daniel, confiante e mais crescido (na altura do alto dos seus sábios dezassete) que convenceu Dingilizwe (de apenas quinze) a formarem os KMD, em 1988: além do nome do coletivo (sigla que remete para Kausing Much Damage), inventaram para cada um alter-egos como ditava a moda: Daniel batizou-se de Zex Love X e Dingilizwe decidiu chamar-se DJ Subroc. Para concretizar a missão, chamaram também para o microfone um outro jovem membro ativo da comunidade negra muçulmana, e juntos lançaram o álbum de estreia, Mr Hood, em 1991, através da Elektra Records.
Mr. Hood soa exatamente ao que devia soar: é um disco fresco e cheio de energia, no qual os três adolescentes transbordam um arrojo inocente e sem esforço nas rimas e batidas. As palavras que deslizam com facilidade dos lábios de Zex Love X ou Rodan contam com à vontade despreocupado as peripécias e vidas de três jovens negros que crescem na cidade, e ouvi-las a serem cuspidas de forma tão orgânica dá-nos a sensação de quem espreita pelo buraco da fechadura sem ninguém saber: em “Peachfuzz”, single lançado ainda em 1990, a narrativa é galhofeira e tranquila, perfeitamente temperada pelo instrumental curado por Dingilizwe ou, agora, DJ Subroc, que navega entre as palavras dos seus colegas brincalhão e relaxado. Só poderia ter sido escrito, executado e gravado quando e onde foi, e por quem foi, e, ao longo de todo o primeiro álbum de sempre daquele que viria a ser MF Doom, o vento por detrás de todo o realismo orgânico das rimas são as batidas de Subroc, que irradiam através de todo o disco um sol de um nova iorque de verão que quase adivinhamos sentir na pele.
Mr Hood não é nada mais do que isso, um conjunto de temas, que, embora inevitavelmente toquem na infeliz circunstância que era e que é o racismo e a discriminação social impossível de ignorar na cidade já com tão tenra idade, acabam por resultar num produto final de uma leveza tranquila que só se consegue antes dos vinte e cinco anos. No entanto, o mesmo não seria o caso do próximo projeto do coletivo, Black Bastards, gravado nos primeiros meses de 1993, que os veria mais duros, cínicos e azedos como muitas vezes pede o bom hip-hop feito por e para pessoas mais crescidas.
Não devemos julgar um livro pela capa, já dizia o velho ditado: mas, tanto nos livros como nos discos, muitas vezes é o caso, até porque, tanto em 1993 como em 2019, o desenho estampado dentro do precioso quadrado de plástico é o que nos assalta os sentidos em primeiro lugar. No caso de Black Bastards, o assalto é da ordem mais violenta: um cartoon verdadeiramente nauseante no qual uma figura negra caricaturesca sufoca sob o seu próprio peso, num jogo da forca macabro; vemos a personagem pitoresca de pescoço na corda, enquanto por baixo os traços do jogo de criança deixam adivinhar a solução para o nome do disco – “BL_CK B_ST_RDS”. De imediato, convida o observador a entrar contra a sua vontade numa brincadeira de mau gosto que repulsa e que afasta.
E afastou: foi muito graças à capa incendiária que os próprios KMD insistiram manter para ilustrar o seu segundo álbum que este acabou por ser arrumado a um canto por uma editora cada vez mais receosa de controvérsia. E lá ficou, sendo descoberto aos poucos e poucos numa World Wide Web recém-nascida, e, quando a curiosidade passou a sussurros e os sussurros a conversa generalizada, lá acabou por ver a luz do dia em 2001, editado através da Sub Verse Music. Por essa altura, muito teria mudado para as duas figuras presentes.
Não deixa de ser irónico estudar o processo acidentado que Black Bastards percorreu, de boca em boca e de ouvido em ouvido até ser colocado sem vergonha à venda para o público geral, ao mesmo tempo que ouvimos um disco que ele próprio parece ter noção da sua qualidade de relíquia misteriosa: as catorze faixas que o compõe soam todas ligeiramente inacabadas, sem grandes retoques ou preocupação, resultando num produto orgânico, e, aos dias de hoje, verdadeiramente fantasmagórico. Não falamos de um gangster rap polido e censurado para as rádios e televisões, mas sim de um produto que parecemos ouvir como foi feito, sem intermédio algum. E isso torna-o ainda mais fascinante do que qualquer tema dos Public Enemy que andasse a dominar a antena uns tempos antes. É cru, feio, e mau: mas, ao mesmo tempo, sardónico, atrevido, irresistivelmente inteligente e engraçado.
Depois de nos assaltarem os olhos, os KMD não perdem tempo em roubarem toda a atenção aos nossos ouvidos com faixa de abertura de Black Bastards: “G_rb_g_e d_y #3” abre com um groove inquestionável de teclas e bateria encostadas a um sample vocal pedido de emprestado a um filme obscuro da década de sessenta – uma técnica que MF Doom não tardaria a levar do irmão para o resto da sua prolífera carreira – que referencia imediatamente a partida de Rodan do coletivo e anuncia o clima de tensão racial sentido ao longo de vários temas do disco. Numa cacofonia de vozes e barulhos que serpenteiam o instrumental de jazz, preparamo-nos para um disco de hip-hop como muito poucos que tenhamos ouvido antes. Destacam-se pela diferença o honestamente violento “What a Niggy Know?”, o comemorativo “Sweet Premium Wine” e a poesia peculiar da faixa título.
Tal qual Batman e Robin, Zex Love X e DJ Subroc unem o melhor de cada um para formar uma dinâmica imbatível: nas rimas, um Doom que ainda não o é já possui uma qualidade áspera para o trocadilho e domina as palavras com a proeza de um dicionário, fazendo tudo parecer tão fácil; já Subroc evolui milhas desde Mr. Hood, onde se revelara um produtor competente para lá da sua idade, mas, aqui, possui um faro aguçado como poucos para o árduo trabalho de pesquisa e de tratamento dos mais variados sons, que não se prendem apenas com o musical: Black Bastards pertence sobretudo à voz de Zex Love X, mas partilha-a com dezenas e dezenas de vozes que nos chegam de toda a parte e que Subroc submete de imediato à sua vontade. E, como um cineasta, constrói cuidadosamente para as personagens que Zex Love interpreta um plano lógico e perfeitamente orquestrado. Sem um ou sem o outro, Black Bastards não seria possível. No entanto, apenas um dos irmãos chegou a ver o álbum completo.
Em 1993, pouco tempo antes do final das sessões de gravação do segundo disco de KMD, Dingilizwe é tragicamente ceifado pela morte, que o apanha sob a forma de um atropelamento fatal. Teria apenas dezanove anos. Em consequência do desaparecimento prematuro do seu principal produtor, aliado às preocupações da editora com a capa controversa, o disco é despachado para definhar e morrer no vazio. Daniel, que acabara de perder o braço direito que adivinhava para a vida, desaparece: e, como nos melhores filmes de super-heróis, regressa com uma máscara que lhe confere um anonimato que a situação inesperada pede. Transforma-se no sempre mítico MF Doom, e, quando Black Bastards vê finalmente um lançamento official em 2001, já não era aquele menino com cara e nome que começava a dar cartas num meio que ia começando a ouvir a sua voz aqui e ali – desde 1999, ano de lançamento de Operation Doomsday, que se transformara definitivamente no vilão preferido do hip-hop underground. Já Dingilizwe nunca chegou a ver o disco que com tanto afinco produziu sentado numa montra.
É curioso cismar, sempre, acerca dos caminhos curiosos que a vida vai tecendo sem aviso. E as perguntas multiplicam-se, e começam sempre da mesma forma: e se Dingilizwe estivesse vivo? Teria produzido mais? Sozinho? Sempre ao lado das explosivas rimas do irmão? MF Doom existiria, sequer? Os KMD teriam feito mais? Menos? Só vale imaginar. Por agora, resta-nos Mr. Hood, e, principalmente, Black Bastards. Porque esse ao menos conseguimos, até que enfim.