Canção do dia

“I Remember Me” – Silver Jews

(Esta semana o tema são despedidas. Primeiro a quatro músicos que morreram este ano. E o quinto adeus é a um senhor que anunciou que vai deixar de cantar. Deixamos aqui as nossas homenagens.)

David Berman fez da sua depressão tábua rasa para canções bonitas. Tal como Will Oldham, Jason Molina, Mark Linkous ou Bill Callahan. Entre estes quatro, Berman é o menos musical, mas também aquele que tem a mais fascinante relação com as palavras. O músico dos Silver Jews conseguia ao mesmo tempo ser sublime e cáustico, deprimente e romântico, tudo isto sem nunca perder a ligação à sua humanidade conturbada.

Com os Silver Jews ultrapassou a década de 90 editando três discos de excelência e um bonito livro de poesia. Pelo caminho deixou versos de uma honestidade deprimente como “I asked the painter why the roads are colored black/ He said, “Steve, it’s because people leave/ and no highway will bring them back” (“Random Rules”).

Entrou no século XXI com o disco Bright Flight. A quarta canção é “I Remeber Me”, talvez um dos melhores exercícios de narrativa da canção norte-americana.

A canção constrói-se por cima de uma guitarra ligeiramente distorcida que vai aumentando e baixando de intensidade consoante o avançar da história, um acompanhamento que deve tudo ao country, a marca distintiva dos Silver Jews, relativamente aos Songs, Ohia ou aos Pavement.

C(o)anta David Berman a história de um tipo que fica embasbacado por uma rapariga em quem põe os olhos. Os dois desenvolvem uma relação romântica e tudo parece perfeito: dançam ao luar, viajam e apanham flores. Ele ajoelha-se (imaginamos) e pede-a em casamento. É então que um camião o abalroa num momento comi-trágico tantas vezes cultivado por Berman, capaz de deixar o ouvinte com um sorriso desconfortável nos lábios.

O atropelado entra em coma e assim permanece durante anos e anos. Tantos que os amigos dizem à miúda que tem de seguir com a vida dela. E quando ele acorda e a vai procurar descobre que ela está casada com um banqueiro (imaginamos que seja cinzentão) e que mora no Oklahoma.

Desolado, o protagonista compra um pequeno pedaço de terra (talvez em Nashville, no Tenesse) com o dinheiro da indemnização. Com o que resta consegue ainda comprar o camião que lhe deu cabo da vida. E é quando toca na chapa de metal amolgada que Berman nos explica que aquele homem que ali está já não é o mesmo. Porque suspira, com a mão no metal: “I remember her/ And I remember him/ I remember them/ I remember then”. Não é um novo capítulo que começa, é mesmo um novo livro.

David Berman editou ainda mais dois discos como Silver Jews até que entrou num período de auto-reflexão, depois de uma carta de tremenda honestidade sobre o fim do seu projecto musical e o ódio que sentia ao pai (um homem do lóbi das armas e petróleo nos EUA).

Durante dez anos Berman foi um ermita até que voltou, em 2019, com a banda Purple Mountains, depois da morte da mãe e da separação de Cassie. Tirou a própria vida aos 52 anos, a 7 de Agosto. Estava sozinho, mas era amado por milhares.

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