Saiu a meio de novembro, e bastou um mês para termos com ele uma proximidade tão necessária como absoluta. Aqui Está-se Sossegado é um pequeno prodígio de elegância e requinte.
Terá sido José Mário Branco, se a memória não nos falha, a dizer sobre Camané que ele é o maior fadista da sua geração. Também não estaremos enganados se afirmarmos que já alguém terá feito semelhante elogio a Mário Laginha, trocando apenas a voz pelo piano. Assim sendo, e como seria de esperar, em Aqui Está-se Sossegado temos um banquete farto e abundante de preciosas iguarias, feitas por um par de mãos e por uma voz que tudo nos oferecem de bandeja, pelo que só nos resta, num primeiro momento, agradecer o gesto altruísta dos artistas, para depois podermos, à medida das nossas satisfações, abusar da requintada refeição por eles proporcionada. Ora comecemos, então.
Aqui Está-se Sossegado é farto de melodias e de textos poéticos superlativos. Alguns conhecidos, outros mesmo assim ilustres, mesmo que pouco ou nada divulgados anteriormente. Vamos aos que são muito cá de casa: “Não Venhas Tarde”, “Com Que Voz” (o poema de Camões é um dos mais bonitos de toda a sua lírica), “Amor É Um Fogo Que Arde Sem Se Ver” “Abandono” (que, com os anteriores, foram originalmente musicados pelo enorme Alain Oulman, neste caso por sobre um poema de David-Mourão Ferreira), “Ela Tinha Uma Amiga” (um velho hit de Camané, com texto do autor de “Inquietação”), “A Guerra Das Rosas” (de Manuela de Freitas e de José Mário Branco) e “A Casa Da Mariquinhas”, outro tema histórico do fado agora revisitado. O atrevimento de mexer com os míticos Amália Rodrigues e Alfredo Marceneiro vem já de outros tempos, de novo, e felizmente, retomados. Se a voz de Camané é a mesma de sempre, se a arte do seu canto também nos é tão vizinha, o piano jazzístico de Mário Laginha perde um pouco do adn que lhe reconhecemos para se transformar num milagroso acontecimento. Que bem combinam ambos, sempre sem quaisquer desnecessários virtuosismos artísticos, lembrando, de uma ponta à outra do disco, a máxima less is more, de Ludwig Mies van der Rohe.
No entanto, saudemos os poetas, uma vez mais. Fernando Pessoa surge em dose dupla. No tema “Quadras” e também na canção que dá título ao trabalho discográfico. A velha obsessão pessoana de não ser dois ganha aqui território fértil, uma vez que os dois artistas fazem do tema “Aqui Está-se Sossegado” uma bonita homenagem, se assim quisermos entender, ao nosso maior poeta do século passado.
Resta ainda dizer que o fado de Camané combina muito bem com o piano de Laginha. Parecem gémeos que se conhecem umbilicalmente, sabendo nós que são, por natureza, crias de jurisdições tão diferentes. O fado, por tradição, restringe. O jazz, também por tradição, amplia. Em Aqui Está-se Sossegado vivem ambos em harmonia divina e dão mostras de perfeita e sadia comunhão. Vai ser difícil, pensamos nós, que este início de caminho não venha a ter outras paragens futuras. Serão, naturalmente, esperadas com expectativa. Mas, para já, aproveitemos, nesta época onde se festeja um tão longínquo nascimento, o milagre recente que brota de Aqui Está-se Sossegado.